sexta-feira, 8 de julho de 2016

Homens São Valentes: A Jornada do Morcego de Gotham em 'Batman v Superman'


No primeiro editorial sobre 'Batman v Superman' feito por mim, foi analisado a jornada de Clark Kent nesse filme. E era inevitável que chegasse a hora de discutir a jornada do Batman, que no caso começa um novo capitulo dele nos cinemas, não seguindo a trilogia de Christopher Nolan e integrado ao DCEU em uma nova versão, e assim como Superman, teve uma evolução como personagem que saiu fora do habitual e que gerou duvidas e indagações. Esse texto aqui, como no feito com o Superman, procura analisar a trajetória do personagem e as influências dentro e fora dos quadrinhos para a construção do personagem. Continua abaixo:

"Fomos sempre criminosos"

Para bom entendedor, o titulo desta parte do editorial não precisa de explicação: tirada diretamente do clássico de Frank Miller, The Dark Knight Returns, de 1986, ela é posta ao filme quando Alfred (Jeremy Irons) confronta os métodos cada vez mais violentos de Bruce Wayne contra os criminosos. O Batman de Zack Snyder tem como inspiração principal o Batman de Frank Miller, e não tem vergonha em deixar isso bem claro toda hora. É mostrado também elementos do Batman de Jeph Loeb (e Jim Lee) de Silêncio, além de um toque do Batman de Grant Morrison. Mas a importância principal de colocar elementos do Miller em destaque mora exatamente na questão da violência que é inerente a essa versão do personagem, e nos faz questionar exatamente não só o papel do Batman como antítese do Superman, mas o papel do Batman de Frank Miller nos dias de hoje.

Batman é uma criatura gerada a partir do medo, e medo é a palavra chave para entender o Batman de Miller e seu mundo. Se antes os horrores da Guerra Fria e da crescente escalada da violência assustava a população em DK1, DK2 mostra a grande fraqueza no esquema de super heróis que os fazem ser manipulados pelo medo, assim também como a evolução da tecnologia sufoca os problemas e a voz que as combate. Em DKIII, vemos o mundo se recuperar os eventos passados, até que a libertação dos Kryptonianos de Kandor expõe todo o medo da opressão e da xenofobia de ambos os lados. É um mundo de opressão, um mundo de violência, que precisa de uma força que seja muscular o bastante para colocá-la de volta aos eixos. E essa força no caso, seria o Batman.

Mas o que faz 'The Dark Knight Returns' um clássico? Além da revolucionária forma narrativa como é contada, ela trouxe Batman ao mesmo nível de outros clássicos de seu tempo, como Watchmen e Maus, a um nível de maturidade que os quadrinhos europeus (como Metal Hurlant, que Snyder é fã) estavam a frente a muito tempo. Ele tornou o Batman uma história para adultos, levando o personagem a consideradas radicais direções na sua época, mas mesmo assim mantendo e enaltecendo os elementos que o tornam um pilar em seu gênero. Nas palavras do próprio Miller: "O fiz tão velho quanto eu poderia concebivelmente imaginar que um homem poderia ser. E fazendo isso, eu fazia ele mais velho que eu [na época]. O fiz mais durão, e fui capaz de movê-lo através do tempo em um mundo que se assemelhava muito mais ao mundo que eu vivia, em 1986, em New York. Eu estava atualizando o caráter dele e o envelhecendo ao mesmo tempo. E eu pensei que eu estava fazendo-o velho e rabugento. Mas eu não aprendi o que é ser velho e rabugento até eu fazer 50."

Porém, algo que também é parte da importância de 'The Dark Knight Returns' foi, de fato, trazer de forma mais aberta e pesada temas psicológicos em questão. Se antes eles estavam ali mas eram tratados com certa nuância, Watchmen tornou isso explicito e inerente aos super heróis, enquanto a obra de Miller mostrou que sim, isso também poderia se aplicar os velhos heróis e vilões que conhecíamos. Isso tudo claramente mostra como impactou Snyder quando lhe foi dado a oportunidade de construir seu próprio mundo de super heróis: é um mundo de diversas influências visuais, mas que procura dentro do absurdo do mundo dos super heróis tirar algo realista dali. O impacto do trabalho de Miller foi dito em entrevista ao Black Tree TV: "Quando eu li essa série de quadrinhos, você sabe, em 86 eu estava no chão por isso, porque eu senti que me prometeu alguma coisa. Ele desafiou ... minhas noções fundamentais sobre o Batman . Isso me inspirou a me reconectar com o Batman como personagem e as histórias em quadrinhos em geral."

E é isso que ele faz novamente em Batman v Superman. Assim como foi feito em 'Man of Steel', ele tira o Batman de seu lugar comum e o desafia. É um Batman mais velho, mais rancoroso, que ao mesmo tempo que aproveita a vida de bilionário, sente um vazio existencial de 20 anos combatendo fogo contra fogo. É uma pessoa movida pelo medo e pela impotência de anos tentando fazer sua cidade ser melhor e pagando terríveis preços com isso. Mas além disso, Bruce precisa dessas "cicatrizes" para se manter como Batman, porque ser Batman é a sua maior obsessão. Ele não vê como resolver o tipo de crimes que combate utilizando, nem que seja por um momento, sua persona publica. Quando é obrigado a ir vestido de "playboy rico" a casa de Lex Luthor, antes de sair ele encara o seu bat-uniforme com um desejo, como se essa roupa fosse sua segunda pele (numa cena remanescente de Watchmen).

A descrição de Bruce Wayne/Batman no filme se encaixa muito bem com que o repórter Oliver Sava disse ao A.V Club sobre o personagem na revista de Frank Miller: "Miller traz todos os traumas pessoais de Bruce Wayne para a frente de seu personagem, oferecendo um retrato de um homem obcecado em parar o crime porque ele não pode escapar da memória de seus pais sendo assassinados, um evento que ele nunca vai ser capaz de parar, não importa o quão duro e quanto tempo ele lute para proteger Gotham. Miller mergulha profundamente nos temas subjacentes que definem Bruce Wayne e Batman (assim como Superman e outros vilões principais variados) e leva-los até a superfície, tornando DKR um estudo de personagem abrangente que está alinhado com o que veio antes, mas muito mais ambicioso e grave na forma que se aproxima do material psicológico. É uma das primeiras tentativas de desconstrução de super-heróis, e ainda é um dos mais fortes, em grande parte porque essa narração pesada realmente coloca você dentro da cabeça de Bruce. Isso não é um lugar agradável para se estar, e eu me pergunto se Miller pretende esgotar o seu público com a forma de quão opressiva a mentalidade de Bruce é."

Bruce Wayne é definitivamente uma pessoa problemática, e vemos que a chegada do Superman não ajuda a melhorar isso. Se eu não consigo proteger minha própria cidade contra criminosos, como eu posso protegê-la eventualmente de um ataque de um Deus?A solução que ele acha é agir mais mais força, levar-se a si mesmo aos limites do que ele pode fazer como vigilante, e com isso vem o caso da mortes. Este Batman mata? Sim. Esse Batman já matou antes nos quadrinhos? Sim. Isso significa que o Batman do Snyder sempre matou, desde o começo? Não. Algo bem claro é que o Batman nem sempre foi do jeito que é mostrado ao longo do filme, e essa mudança foi exatamente dada porque ele não tinha exatamente aquilo que faz o Batman não ir a extremos ao longo de seus anos de publicação. Ele não teve um Bat-Squad, ou uma Liga da Justiça. E o pouco que ele teve, lhe foi retirado.

E matar é uma opção principal? Não. Ele normalmente só atira em resposta as pessoas que tentam atirar nele, e ele não se importa quem morre no processo, pois como ele mesmo diz, são mortes que ali não fazem diferença, pois "Criminosos são ervas daninhas. Arranque um e cresce dois em seu lugar". São parte de um jogo que ele está cansado de jogar e de se importar. O polêmico e famoso 'Bat-Branding' feito por Snyder casa bem com essa ideia de que, nesse contexto, ele precisa levar as coisas a extremos, e que está cansado de lidar com o "sistema".  Ele liga só para causar dor e medo, e não está ligando para as consequências de quem é marcado por ele acaba sendo morto na prisão. Mas o 'Branding' tem outras 2 origens específicas, que é um exemplo exato de porque Zack Snyder sabe muito bem o que faz.

A primeira origem do 'Branding' se apresenta na primeira encarnação live-action do personagem, do seriado da Columbia Pictures em 1943, quando presos ao poste, vemos dois criminosos amarrados com a Marca do Morcego neles. A segunda origem do 'Branding' está diretamente ligada a origem de Bruce Wayne tanto no filme quantos nos quadrinhos: apesar do cinema dar destaque ao lançamento da semana ('Excalibur', que não foi colocado ali de graça, como vou explicar mais na frente) Bruce foi ver 'Mark of Zorro' de Tyrone Powell, e como todos sabemos, marcar em seus inimigos com um 'Z' a espada é uma de suas maiores marcas, e é claro que algo no subconsciente de Bruce trouxe isso de volta a tona (agradeço ao Movieplot pela iluminação deste fato). Isso também é bem relevante dentro do DKverse, como você pode ver na imagem abaixo:


Mas um dos muitos pontos que se tratam sobre o Batman do Miller é o seu fascismo, que afinal, está presente de fato ou não? Surgiu a partir do seu trabalho ou veio a tona graças ao mesmo? Quando questionado sobre, Frank Miller discorda, dizendo que "Qualquer um que pensa que Batman era fascista deve estudar suas políticas. O Cavaleiro das Trevas, se alguma coisa, seria um libertário. Os fascistas dizem as pessoas como viver. Batman apenas diz que criminosos devem parar." Mas o pulo do gato mora que ele não está falando sobre O Batman do Frank Miller, ele está falando sobre O Batman. Obvio que a discussão desse ponto é um daqueles assuntos que podem render anos e anos de textos e discussões. mas os fatos nos permitem a uma abordagem mais direta: Frank Miller é, politicamente falando, conservador, e isso já se mostrou claro até demais nos seus últimos trabalhos.

Como falamos acima, o seu Batman se baseia no medo, não só em sofrer medo e implantar medo, mas como sociedade se une por causa dessa mesma sensação. Mas por outro lado, Miller reconhece que, realisticamente, não se pode tirar certos elementos que se tornam o Batman, pois se houvesse a remota possibilidade de Batman e seus vilões serem de fatos curados de sua insanidade, não haveria conflito. E sem conflito não há trama. Por isso há um certo cinismo, e uma negatividade inerente a obra, porque isso vem do fato de, apesar de se tratar de assuntos sérios, ele não necessariamente se leva a sério, pois isso o limitaria quando história e estudo dos personagens. Como Frank Miller disse no documentário 'Legends of The Dark Knight: The History of Batman' "Eu não quero ver o Superman com o sovaco suado. Eu quero ver ele voar."

E isso nos leva a interpretação de Zack Snyder. Era um desafio diferente de trazer Superman de volta como foi feito em MOS, pois havia uma recente interpretação que tinha acabado de terminar, feito pelo Christopher Nolan, bastante popular e consagrada em seus objetivos. A escolha de Snyder de ter um Batman tão próximo de Miller parte não só do fato de que ele é um fã da história, mas também precisa do contraponto narrativo certo. Clark Kent acha que, de fato, Batman é um fascista, apesar de não chamar como tal, e que por ser "um reino de terror de um homem só" durante 20 anos, não vê suporte de ninguém em derrubar esse criminoso, já que pra todo mundo, inclusive para o próprio Batman, a violência em Gotham não tem jeito. Batman está ali para manter essa violência contida, mas cada ato dele gera uma reação em cadeia que vai por acabar afetando negativamente a cidade e em paralelo tornando a abordagem dele mais dura e violenta.

Batman está nessa a tempo demais, e perdeu demais a fé não só no sistema de justiça mas no próprio sistema que ele pôs para si como Batman. Tudo faz parte de uma longa escalada de 20 anos onde quando Batman bate forte, o inimigo bate mais forte ainda, e ao ver uma pequena amostra no poder do Superman, ele decide ir a extremos. Todo ato de violência do Batman é causado pelo sensação de impotência que o Superman lhe causa, e por mais que ele se esforce, ele não vai conseguir, a principio, derrotá-lo como homem que é. Batman decide ir mais violento com os criminosos na revista, mas isso está a par exatamente com essa ideia que chegou a vez dele de bater mais forte como parte da escalada de como ele age. Então, a truculência e factual violência que o Batffleck faz no filme é de fato justificada, mas também apoiada por todos, da polícia até aos próprios criminosos.

O filme acaba, colocando Clark em outra batalha para provar o seu ponto que sim, podemos ser bons, tanto que ele não procura derrubar Batman como o messiânico super herói, mas como jornalista que acredita que o poder que é nos dado pela imprensa é de fato fazer a diferença, não vender jornais, sendo que o oposto é mostrado exatamente como critica por parte de Miller em DKI. Ambos possuem suas qualidades como "xerifes" de seus respectivos condados, mas quando vemos os dois baterem de frente, vemos que Superman é Will Kane (de High Noon) e Batman é The Stranger (de High Plans Drifter). O filme entende do que se trata de fato DKI e da violência que é inerente a ele não necessariamente cabe ao nosso tempo. Mas as melhores histórias do Batman pós 'Dark Knight Returns' reconhecem esse fato e tentam trabalhar a partir das criticas e reflexões que essa história traz para construir a sua própria visão/versão do personagem.

Snyder faz aquilo que é inerente a sua filmografia, de dar o espetáculo e mostrar que há consequências disso para criticar exatamente as ações da mesma, no caso, de um Bruce Wayne que sempre queremos ver, mas num contexto em que ele não é exatamente o herói da história. Vemos ele fazer coisas que alguns podem julgar ser erradas ou extremas de acordo com que conhecemos sobre o personagem, mas o filme utiliza aquilo que, como bat-fãs, mais adoramos, que é exatamente a considerada melhor história do Batman. Adoramos o Batman do Miller, mas por saber que nem tudo funciona fora da história de Miller, Snyder utiliza as mesmas fundações, mas para fazer evoluir para o personagem que conhecemos em algo novo, usando exatamente o elemento do medo opressor e do medo "do outro" para construir, e posteriormente redimir, o seu Batman.

Uma das muitas falas tiradas diretamente da história e colocadas no filme.

O filme não é só sobre A Paixão do Superman e o reconhecimento dele como herói, mas também sobre A Redenção do Batman a voltar a se tornar um herói de fato. É basicamente expor o processo de exatamente acompanhar a jornada do que vai ser, no caso, o Batman do Snyder no próprio roteiro, e nós como testemunhas do processo. O Batman está abatido, violento, paranoico, tudo que sempre queremos que ele fosse nas telas mas ao mesmo tempo nos faz questionar a questão de extremos para se adaptar o personagem, pois ele também é vitima do medo do "outro" e da sensação de que sentir medo é o que basta para ele se ser o que é.

Engenharias de um Pesadelo



Uma das minhas coisas favoritas no filme são as cenas de pesadelo do Bruce Wayne. Zack Snyder sempre soube utilizar muito bem as imagens ao seu favor, utilizando-as como forma de entregar uma mensagem sem necessariamente sem falar nada. Como é obvio, este definitivamente não é o Batman do Christopher Nolan, Snyder teve o desafio de passar o básico da história do personagem em pouco tempo, já que o foco era desenvolver o personagem naquele ponto na trama contada, e mesmo assim, muito se suas origens e o que se passa na cabeça dele é contado de forma puramente visual, deixando o espectador interpretar os fatos e absorver a informação para si.

Normalmente as cenas de pesadelo são dividas em 3 partes: exibição, quebra de expectativa e confirmação. Eles podem, ou não, ter continuação no "mundo real" após acordar, que também ajuda a confirmar certos pontos apresentados no sonho. Vejamos por exemplo a cena de abertura. Vemos duas cenas em paralelo, mas que informam a mesma coisa: Bruce Wayne viu seus pais serem assassinados e no enterro deles, foge e acaba caindo em um poço cheio de morcegos, mostrando aí os momentos de medo definitivos em sua vida, que irão construir de fato o Batman que conhecemos. Além disso, vemos lá pra frente, pequenas informações que podem ser relevantes para o futuro e para o entendimento do personagem. Vemos que ele foi assistir Zorro, vemos que Excalibur iria estrear em breve (aí já fazendo a ponte entre o passado e presente dele, como Batman, ponto este a ser explicado a frente). Vemos que as ultimas palavras de seu pai foram 'Martha', que é de crucial importância para o filme.

Além do fato que a cena é uma recriação quadro a quadro da morte dos Wayne em 'The Dark Knight Returns', ato este não feito pelo diretor desde 'Watchmen'. Mas a parte em destaque é quando a pérola entra no bueiro e cai dentro do poço, dando a indicar, mas não necessariamente confirmando que aquilo é um sonho. Isso só acontece de fato quando os morcegos levam o pequeno Bruce para a luz, que aí ganha duas conotações diferentes. Uma se refere de fato a redenção de Bruce, fazendo aí um preságio do fim do filme, mas também indica que essa "luz" no caso poderia ser o Céu, onde seus país estariam, e aonde ele finalmente teria paz. Mas no caso, por mais obvio que pareça, Bruce confirma que está consciente que isso é um sonho baseado em suas memória quando ele confirma que isso tudo é uma "bela mentira".

Aí partimos para o segundo pesadelo, que a principio apresenta Bruce Wayne andando num descampado, com a Mansão Wayne no fundo em ruínas. Vemos que ele vai em direção ao mausoléu da Família Wayne, deixar flores especificamente no tumulo de sua mãe. No vidral, a imagem de um Anjo com uma espada, descendo em uma cidade em chamas, alusão ali obvia ao Superman e a expectativa de uma figura divina que fosse nos salvar das calamidades. E aí, a mensagem é passada: para preencher o vazio de seus pais, um "homem morcego" (literalmente) tomou seu lugar, mas ao acordar, vemos que a situação de Bruce está bem diferente.

Ser o Batman não está mais o deixando pleno como pessoa. Vemos que ele está abraçando cada vez mais a vida de playboy, bebendo e dormindo com mulheres diferentes a cada noite, porque ser um vigilante não está mais lhe deixando plenamente realizado. Vemos também que ele não está mais vivendo na mansão Wayne, mas sim em uma nova casa, mas ainda sim perto da (agora confirmada) Mansão Wayne em ruínas. A mansão em ruínas e a cena que ele não só encara seu Bat-Uniforme mas também o uniforme do Robin assassinado passam exatamente mais informações não só sobre o Bruce como pessoa, mas também de seu mundo, e das cicatrizes que ele precisa tanto para se manter como Batman. Ele precisa de todas essas cicatrizes pois elas o lembram da dor que o motiva a fazer o que faz.

Esta sequência ainda mostra que realmente houve um sacrifico (olha aí ela de novo) durante o percurso de sua jornada. O que lhe foi tirado não foi reposto, mas sim acrescenta ainda mais as dores que Bruce precisa ter para se sentir vivo. Ser Batman nunca veio de um lugar exatamente saudável dentro de sua psique, mas isso só se tornou pior com o passar dos anos. Até a chegada desse ponto, o filme já tinha nos informado como as cenas de pesadelo funcionam e nós como publico, já tínhamos absorvido qual era seu objetivo ali. Até que em um certo momento temos uma terceira sequência de pesadelo, a famosa cena "Knightmare", que é aonde Snyder exatamente quebra o padrão que ele mesmo estabeleceu, mas para o bem.

O Knightmare surge literalmente cortando uma das cenas, com um fade out, e voltando com um Batman num mundo pós apocalíptico. Apesar da sequência a principio mostrar bem o medo do Batman em relação ao Superman de modo bastante distópico, o que faz você questionar da veracidade daquilo como pesadelo é exatamente o fato de certas informações, além de não estarem inseridas no contexto do filme, serem específicas demais, como por exemplo o gigantesco simbolo Omega no mar que separa Gotham e Metrópolis. Logo após, vemos a chegada de Parademons, o que faz a gente ter certeza que isso não é de forma alguma um sonho, pois como Bruce saberia da existência deles? A sequência toda marca realmente o ponto de virada do filme em muitos sentidos. Primeiro, com o trabalho de contar a história de vida do Batman até aquele ponto encerrada, pode-se começar a de fato construir a semente para o filme da Liga da Justiça.

Ele se utiliza da mesma estrutura apresentada anteriormente (exibição, quebra de expectativa e confirmação) mas não para passar uma informação do passado, como foi feito até então, mas para passar uma informação do futuro. Vemos informações que nos informam sobre os possíveis conflitos dos dois filmes da Liga da Justiça, mas ao mesmo tempo a cena não fica deslocada, pois seus temas ali combinam exatamente com os medos e receios do Batman em relação ao Superman ao longo do filme. Com o caminhar do filme e de suas revelações, ele percebe que algo parecido com este futuro pode de fato acontecer, e é importante fazer algo sobre isso. visual e narrativamente, a sequência funciona e é uma bem vinda refrescância na maneira de contar a história de um personagem, saindo fora dos padrões comuns.

"They Were Hunters"

Os quadrinhos, assim como o velho oeste, são coisas diretamente enraizadas a cultura norte americana. Apesar de que o velho oeste em si foi real, ele aparece em diversas mídias e tem uma grande força de inspiração, direta e indiretamente, em diversas  histórias. O fim da "Era do Velho Oeste Americano" acontece em paralelo com o surgimento do cinema como meio de massa, então não era de se estranhar trazer esse momento do passado como escapismo, que acabou marcando a cinematografia clássica americana. Se o cinema clássico enaltecia seus heróis vaqueiros e xerifes que defendiam os costumes dos justos em uma terra sem lei, aos poucos este mesmo gênero começou a tratar de temas mais sérios, e a se levar a sério, tratando sobre temas políticos da época, como chacina de índios e tomadas de terra. Mas a face dos Western começaria a mudar nos anos 60 a partir de produções de Sam Peckinpah com 'The Wild Bunch' e 'Bring Me The Head of Alfredo Garcia', e John Sturges com seu remake de 'Os Sete Samurais', 'The Magnificent Seven'.

Porém, foram os Westerns Spaghettis que quebraram o molde do gênero desromantizando aquilo que a América tinha feito. O Velho Oeste era sujo, violento, corrupto, uma terra de heróis e vilões onde a linha que as dividia era turva. E muitos desses westerns italianos realmente elevaram o gênero a partir do ponto que nos Estados Unidos ele estava começando a desaparecer e os manteve em alta até o final dos anos 70. E é de fato que isso influenciasse outras histórias fora de seu âmbito de western, e a comparação acima que eu fiz entre Will Kane e The Stranger não foi de graça, pois elementos do western estão presentes usualmente nas histórias em quadrinhos fora desse gênero, especialmente do Batman.

Tem uma cena deletada de 'Batman Forever' (1995) que descreve exatamente como isso se basicamente se paga dentro do mundo do Batman: os caras maus vêm até a cidade para desafiar o xerife. Só que o xerife não usa uma insignia, no caso usa um simbolo de morcego,e com sua presença, e consequente vitória, sempre vai atrair mais loucos para desafiar a figura de lei na cidade. O que a cena questiona até quando a presença do Batman vai atrair esse tipo de conflito na cidade. Esta parte do editorial vai falar sobre as influências do western na construção do Batman no em 'Batman v Superman' e na narrativa da mesma, no sentido que vemos aqui, pelo Batman, um western de redenção, não de tragédia.

Um dos temas que une o Batman ao gênero do western, é obviamente, a violência. O exemplo acima só um, mais geral, de como isso está presente com o personagem. Apesar de ser mais ou menos a ideia principal do gênero ao todo, a ideia de escalada do crime se mostrou presente exatamente primeiro no Batman, influenciado aí também pelo Zorro, um herói que em suas origens pulp pertencia a época de transição do Velho Oeste onde o território de Califórnia se via livre do domínio espanhol e após passa a ser parte do México, entre 1800-1830. Com a mudança de governo e de país, muitos queriam impor seu poder politico sobre os oprimidos ou se aproveitar da situação para se obter lucro, sem pensar nas pessoas.

Basicamente Zorro é um herói diferenciado dentro da figura do western, definitivamente fora do conceito do cowboy, mas ainda sim um produto de seu tempo e uma indicação de onde a cultura pop estava indo no inicio dos anos 1900. Ele e Batman tem exatamente esse mesmo ponto em comum: quando os poderes políticos do qual damos confianças de nos proteger e nos oferecer o melhor falham, temos que sair desse ponto de inércia e fazer algo para mudar. No momento que isso acontece, e o povo dá suporte para tal ação, acaba o tornando um servidor de certo modo, não ao governo, mas ao povo e suas necessidades. Com isso, podemos ver tanto Zorro quanto Batman como "homens da lei" não oficiais, visto pelos verdadeiros servidores do estado talvez como criminosos, mas a defesa de um povo que não pode contar com os serviços oficiais.

E com isso voltamos ao primeiro ponto dito sobre: o ciclo de violência. Na posição da pessoa a ser desafiada na cidade, outros, dentro ou fora da mesma, vão se locomover e desafiar o poder vigente e escolhido pelo povo exatamente como o ultimo obstáculo antes de poder espalhar o terror na cidade. No momento que ele é detido, no contexto do western, ou ele é preso ou morre, fazendo quem estava com ele fugir para nunca mais voltar, ou pior, voltar para a vingança. E com isso também a fama dele se espalha em ser o melhor, e faz outros querem encará-lo para manter e comprovar seu ego inflado. No caso da mitologia do Batman, isso explica, em parte, o surgimento de seus inúmeros vilões, também, assim como o Zorro, o estabelece como protetor da lei e da ordem de acordo com o povo, um xerife não oficial.

Isso no filme 'Batman V Superman' se demonstra exatamente naquilo que falamos na primeira parte do editorial, da questão da escalada da violência tanto do Batman quanto de seus inimigos, como também aquilo que citamos no começo desta parte, de vir sempre novos inimigos a desafiá-lo, ou a própria paranoia de Bruce fazer ele ir atrás de enfrentar alguém. É uma noção clássica do western que está presente do filme, de ninguém a Gotham a se opor ao seu cowboy fora-da-lei, porque do jeito que ele trabalha, por mais agressivo que seja, funciona. Ninguém liga pra parte pobre da cidade, então vista que a lei não faz seu trabalho direito, o Batman a fará, por mais agressivo que seja e por mais opressor que pareçam seus atos. Ele reprime violência com violência, e é a solução que tem no momento, mas não necessariamente o "cowboy no cavalo branco" que ele pode ser, e mais importante, um dia foi.

E por outro lado, temos no filme ele se assumindo ali como um criminoso, não como um herói que um dia foi, puxando aí um conceito mais presente no western spaghetti do que o americano: do herói imperfeito, quiçá isso a principio, impuro, que na jornada mostrada, encontra a sua redenção. Não deixa em nada a dever ao que de fato acontece com Bruce no filme, que vemos que um dia já foi um herói e se vê hoje em dia agindo ao contrário, colocado em uma situação que revê suas crenças no que faz e na forma como lida com o mundo. Mas claro, o principal processo que move o Batman no filme (e em geral) e o processo de dor e vingança. É como em 'Death Rides a Horse', onde a vingança de Bill Meceita (John Phillip Law) aos assassinos de sua família não é só levada pela vida mas também tem seus totens, lembranças de pertences de seus entes queridos mortos, para lhe dar motivação, da mesma maneira que a Mansão Wayne destruída e a roupa do Robin morto servem de motivação ao Batman, e sem saber que a a pessoa que o "ajuda", tanto Ryan (Lee Van Cliff) e Lex (Jesse Eisenberg) está o manipulando ao seu favor.

Bruce, cego pela vingança, não consegue enxergar o outro como alguém igual a ele, que coincidentemente, também é um estrangeiro. Apesar de xenofobia não estar presente em BvS de maneira tão forte, já que é mais focado na figura messiânica em que Clark é colocado do que o fato dele ser um alien, não signifique que este elemento esteja diminuído no filme, já que pelo fato de existir vida em outro planeta nos torna de fato insignificantes em relação ao universo, o que acaba justificando as nossas frustrações (e as dos personagens) desse estrangeiro não ter vindo antes para resolver nossos problemas do passado. Com isso, não deixa de ficar claro que a relação do Bruce com Superman é a mesma de dos americanos que tomaram o oeste e viam os índios como aqueles que não poderiam pertencer ao pedaço de terra que (teoricamente) era deles, mesmo sendo ambos pertencentes da mesma terra. Aqui mora mais a dificuldade de ver o "inimigo" como um possível igual, o vendo como um antagonista acima ou abaixo daquilo que realmente defende, assim como a necessidade de colocá-lo naquilo que se acha que é seu lugar.

A cena nas docas entre Batman e Superman é o exemplo mais literal dentro do filme da influência do western. Apesar que esse confronto em especial é atípico ao gênero western, que surgiu do embate dessas duas figuras da lei que se antagonizam, porém se completam. Isso começa na cena onde Superman, sendo o "xerife do mundo" pede que Batman não emita seu (bat) sinal no céu e diz que ele deve parar de agir como um vigilante e se aposentar, antes de medidas mais duras serem postas. E para chamá-lo ao duelo, Batman emite o Bat-Sinal como um "Fuck You!" ao Homem de Aço e trazer a luta até ele. Ele chama ao duelo em frente a parte velha e abandonada da cidade, mostrando ainda parte desse conflito entre o velho e o novo mundo de um cowboy cansado, que decide que a melhor maneira de ir embora é em um duelo/funeral viking. Isso remete muito ao papel de Henry Fonda em 'My Name is Nobody', ambos procurando o duelo definitivo que os colocará no livros de História enquanto lidam com o fato de que o mundo deles mudou. Mas se Beauregard faz isso para escapar da morte de fato, Bruce o faz, a principio, para abraçá-la.

O que o filme acaba também fazendo é algo dito antes aqui que de certo modo tanto Batman quanto Superman são xerifes de perfis diferentes, pessoas que ambos, mesmo com seus erros e pecados passados, estão tentando fazer o melhor que podem em defender as pessoas e entram em conflito exatamente sobre como fazer isso. O que vem a mente é 'Warlock' (1959) com Henry Fonda e Anthony Quinn, que mostra 2 ex-bandidos agora encarregados como homens da lei pelo povo (já que novamente, os poderes oficias locais não podem fazer nada para conter a violência crescente), e dos conflitos que geram a partir do atrito de como lidar com uma gangue de criminosos local, seguindo a lei ou forçando os limites da mesma.

A ironia nisso tudo é que, se a grande luta do filme é construída em cima de suas raízes western, o final dela acaba por anarquizar completamente a formula. Normalmente o duelo é o climax, é aonde todos os acontecimentos da história se conectam e se ligam, e normalmente eles terminam com a morte a fim que o bem triunfe sobre o mal, sendo que há raros casos onde o duelo serve para tornar a morte um engodo sobre o ato em si. Mas em BvS, o momento é utilizado não apenas para desmitificar a imagem do outro, porém também para fazer reconhecer que o mocinho da história talvez fosse nunca isso de fato. O fato dele não matar o Superman ali o redime de uma jornada que ele nem tinha consciência que ele estava percorrendo. O criminoso perde, mas o herói só tem a ganhar a partir daí, e isso será discutido mais a frente em detalhes.

A vingança de Bruce faz paralelos com outros arquétipos clássicos do western, não só da perda da família/amigos, mas a necessidade de se impor justiça sobre eles, quando ninguém mais parece querer o mesmo. Em parte a jornada de Bruce Wayne no filme também se assemelha bastante ao personagem de John Wayne no clássico 'The Seachers', onde temos Ethan Edwards passando um período de tempo (que muitos teorizam que poderia ser meses ou anos) procurando sua sobrinha raptada. Ethan também era, de certo modo, um criminoso, mas defendia certos valores que estavam começando a ficar ultrapassados, no caso,  em uma micro sociedade que aceita o "outro",  um indígena, como um dos seus.

O rapto de sua sobrinha obriga Ethan a partir numa jornada para resgatá-la, vendo aí uma oportunidade de redenção para si mesmo. Mas a diferença entre Ethan e Bruce é que, para Ethan, não é reconhecido no final seu status como herói, mesmo se reconhecendo como tal, sendo oprimido e renegado (numa das maiores cenas clássicas do cinema, do qual você pode ver abaixo) de um mundo que vai seguir em frente sem ele. Fazer o que ele achava que devia fazer não iria deixar a voltar as coisas como eram antes. E com isso ele fica "preso" a vastidão de um mundo que não o quer incluso.


Zack Snyder faz um paralelo/homenagem a esta cena, mas procurando passar uma mensagem completamente diferente. Há duas vezes no filme onde ele evoca esse momento: na conversa entre Bruce e Alfred nas ruínas da mansão Wayne e quando Bruce vai embora do cemitério em Smallville. Em ambas as cenas elas começam com Bruce decorrendo sobre sua missão, uma sobre matar o Superman, que seria seu verdadeiro legado e outra, na prisão com Lex, quando ele confirma que a ameaça vista no "Knightmare" é bem real, mas ambas tratam sobre a mesma coisa: de trazer Bruce Wayne para a luz, e a luz nesse sentido é a inclusão dele nesse novo mundo que foi desencadeado com a primeira aparição publica do Superman.


Se na primeira cena a luz é invadida pela mansão graças as janelas e Bruce, até então indo contra ela, na segunda cena mostra Bruce sozinho, na vastidão dos mesmos milharais em que Clark foi criado, não mais enquadrado pelos limites de uma porta, mas atravessando o portão como, de fato, alguém que pertence a esse novo mundo e jurou defendê-lo. Essa é provavelmente a invocação dos temas do western mais fortes dentro do filme, que como comentado aqui, casa-se bem com o personagem em geral, seja no filme ou nos quadrinhos.

Em nome de Martha



E emfim chegamos na parte mais (desnecessariamente) polêmica (para alguns) sobre o filme, porque de fato se demonstra como uma das grandes sacadas no mesmo: os nome das mães de Bruce Wayne e Clark Kent serem coincidência Martha. Era algo que esteve sempre presente mas que ninguém até então tinha utilizado diretamente dentro do plot de qualquer história, seja do Batman ou do Superman. E aqui ela é utilizada de forma que não só pudesse ser um dos grandes pilares da jornada do Batman no filme, mas também de como ela fecha um ciclo dentro da própria história do DCEU. Mas antes de explicar a importância disso, vamos começar do começo, onde vemos o assassinato dos Wayne, sendo Bruce, ainda criança, a unica testemunha de tudo isso. Seu pai tenta se impor contra o assaltante, e falha. Ao ver sua esposa também sendo morta, as ultimas palavras de Thomas foram o nome da esposa "Martha".

E Martha, neste momento, se torna o catalizador da dor de Bruce. É um movimento simples ao longo do filme, mas que mostra que o verdadeiro alicerce da família era de fato a mãe, onde todos a amavam e a respeitavam.A história aqui no caso não segue a velha tradição da DC Comics de os pais moldarem o que eles de fato se tornam o que crescem, mas sim abre espaço, para ambas Marthas, brilharem. Com seus principais pilares mortos, Bruce pira, e consequentemente vira o Batman para tentar melhorar dessa dor. Mas ele não melhora. Os anos se passam, e os pesadelos continuam fortes, e esse vira o principal motivador do Batman: a tentativa de suprimir seus medos, mas sem mais o senso forte de justiça que ele tinha antes.

E como bem apontado pelo Screenrant, esse fato se torna cíclico com o ocorrido em 'Man of Steel', uma história sobre dois pais e o que eles querem para o futuro de seu filho, e em 'Batman V Superman' mostra como suas relações com suas mães definem os homens em que eles se tornaram hoje. Como o site diz: "tendo passado a idade de seu pai quando ele morreu, Bruce não tem lições a aprender, nenhum legado para adotar ... ele é, literalmente, um homem sem qualquer pai (mesmo Alfred é enquadrado como mais de um parceiro, não um mentor desta vez). Mas a mãe de Bruce? Bem, a simples menção de seu nome o devolve à dor e perda que sentiu no momento de sua morte."

E com isso chegamos ao ponto que explica o porquê a reação de Bruce quando Clark citou o nome de sua mãe: um problema psicológico sério chamado 'Trauma Trigger', que é uma experiência que faz alguém lembrar de uma memória traumática de seu passado, embora o gatilho em si não precisa ser algo assustador ou traumático e pode ser indiretamente ou superficialmente algo que faça lembrar um incidente traumático antigo. Os Trauma Triggers estão relacionadas ao PTSD, uma condição na qual as pessoas muitas vezes não controlam a recorrência de sintomas emocionais ou físicos, ou da memória reprimida. Os gatilhos podem ser sutis e difícil prever, e às vezes podem agravar uma PTSD. Um Trauma Trigger pode também ser referido como um estímulo a um trauma ou um stress causado por esse trauma. (Wikipedia).

E é isso que exatamente que afeta Bruce/Batman naquela hora. Antes de fazer "Deus sangrar", ele conta as lições que a vida lhe ensinou, indo em direção oposta a criação e a antecipação que Jonathan (e Jor-El) tinham para Clark. Ele não tenta ver o humano detrás do Super Homem, e mesmo que ele percebesse a humanidade dele, isso acaba sendo eliminado de sua própria visão de mundo. Ele, basicamente diz naquele momento, que nada que você faça para se comprovar como herói, perante os olhos e julgamento de Bruce, vai lhe absolver do fato de que você não é bom. E então acontece o momento que Clark clama pela vida de sua mãe, e pede que salve Martha.

E com esse feito, ele se quebra. Mais importante que "Porque você disse esse nome?" é o que ele diz após, "O que isso significa?". E é aí em que o Trauma Trigger é ativado. E é aí também que a verdade do que ele tem sendo é jogado na cara. Ele não tem sido um herói. nem perto disso. tudo que ele tem feito é deixado um caminho de violência devido ao seu próprio medo e frustração. E a frustração se transforma em confusão, quando em seus últimos momentos de vida, o Inimigo falou a unica coisa que poderia desmitificar de seu papel de vilão. A chegada de Lois, e a afirmação de que aquilo não é um truque, e que Superman é realmente uma pessoa com mãe, mulher e uma vida que fazem as pessoas se importarem diretamente a ele, que o torna humano de fato.

Para muitos parece ter sido algo do nada, mas isso o impacta em vários níveis, devido a importância que a mãe dele tem de fato. Como explica o Medium: "Deixe-me colocar desta forma: se Bruce Wayne é Hamlet,  Martha Wayne é o seu fantasma . Então Martha é importante. Martha é a razão de por que Bruce faz o que faz, Martha é o que ele está vingando, Martha é o eixo da existência de Bruce Wayne, Martha é seu propósito, Martha é (literalmente?) a mãe para a ideia do Batman. "Martha, Martha, Martha." Se alguma coisa pode acordá-lo a partir deste estado de confusão e angústia, seria sua mãe, seu fantasma: Martha Wayne (ou uma menção desse nome, como é mostrado)."

E com isso o óbvio se revela: ele não está sendo um herói de forma alguma. Ele tem alimentado a própria paranoia, o próprio senso de impotência contra algo que ele, a principio, não pode derrotar. Mas ele se esforça ao limite de matar Superman, nem que leve ele junto ao túmulo. E com isso, ele percebe que está sendo o vilão da história todo o tempo. Os planos e as manipulações de Lex acabam secundários perante a própria visão que ele vira o Joe Chill de alguém. Ele se torna alguém que vai tirar um filho de uma mãe, um namorado de uma mulher. Que está deixando alguém tão impotente e inseguro como um estranho na rua um dia o deixou.

E isso tem uma grande diferença do primeiro tópico sobre como o Batman lida com o ato de matar: durante o combate, é apenas uma resposta a ação do outro atirar primeiro, Superman é a unica pessoa que ele quer matar conscientemente pois acha que com a morte dele a sua jornada de vida terá significado alguma coisa, vendo ele como potencial vilão ao mundo. Mas ele percebe que no fim é tudo uma grande falha da parte dele, que o faz perceber o quão longe está daquilo que ele traçou para a sua vida. A ironia mostra que, na busca em dar um sentido em ser Batman naquela altura da vida, ele acabou se atrelando a algo que acabaria por lhe transformar em seu pior pesadelo.

Porém uma oportunidade surge ali, de Bruce Wayne não ser necessariamente um herói, mas se sentir um herói de novo, ao salvar a mãe do Superman. Há sim uma diferença entre ambas ali na situação, pois, diferente do que muitos pensam, não houve uma "dignificação mágica" da parte do Batman ao não matar o Superman. Ele reconheceu sim, que estava sendo manipulado e que estava pré julgando baseado não só em seus medos, mas do seu preconceito. Então seus atos nas docas, ao resgatar Martha Kent agindo da mesma maneira que até então agia, não eram só justificados por causa que o relógio estava correndo, porque ali era apenas o principio de sua mudança. A intenção dele era não deixar outra Martha morrer, outro filho ficar órfão por culpa dele (assim como ele carrega a culpa pela morte de seus pais).

Mas é nos pequenos detalhes que é mostrado porque Zack Snyder é um gênio, pois a cena do sequestro de Martha reflete os últimos momentos de vida de Jason Todd, o segundo Robin, do qual foi confirmado recentemente como o Robin morto pelo Coringa. Jason Todd busca desesperadamente salvar a vida de sua mãe, que está com a vida em risco e nas "mãos" de um contador de um relógio. Mesmo que não haja uma citação direta a Jason Todd dentro do filme, pra quem conhece a história original e sacou a jogada, a cena ganha ainda mais valores. A morte de Jason é mais uma das muitas culpas, e motivações nada saudáveis, que Bruce tem no filme, e se a morte dele for igual dos quadrinhos (mesmo depois de espancado pelo Coringa, ainda tenta salvar a sua mãe de uma explosão mortal) o fato dele salvar Martha não só gera a redenção em relação ao Superman e ao jeito como tratou, mas reencontra forças de finalmente fechar o ciclo fazendo aquilo que ele não pode fazer por Jason, e assim, diminuir um pouco da sua culpa nesse sentido.


Parte de mim acha que, como Clark Kent sabe a identidade do Batman, e tendo investigado sobre ele, se aproveitou da oportunidade para afetar exatamente aonde bate mais forte em Bruce, que é no psicológico. E mesmo que a principio ele não saiba que ambas suas mães tem o mesmo nome, o filme construiu corretamente a chegada até esse momento. Você tem todo o direito de discordar ou concordar comigo sobre esta questão e tudo o mais, mas é inegável o fato de que ela funciona. E no final o que acaba sendo mais importante? Essa questão é levantada por Josh Rosenfeld em 'Battle of the Senses': em certos filmes, especialmente blockbusters, na busca de se entender como A se conecta com B, acaba de se esquecer de dar emoção no momento. Josh não necessariamente gostou do filme, mas assume que a cena da Martha funciona porque tem uma emoção real em seu núcleo.

Aquilo é importante pro personagem e pra jornada que ele segue ao longo do filme, e de como isso afeta todos os outros personagens. Como Josh mesmo descreve, a cena tem uma "emoção crua" e um "poder nu" que a faz funcionar, e é isso que ao se ver um filme você procura sentir, de qualquer modo que seja, de fazer você se fato se conectar além do senso de lógica. Eu acho que a cena funciona tanto em um nível lógico e, mais importante, emocional, já Josh Rosenfeld acha que só funciona em nível emocional, mas independente disso e da reclamações e chacotas dos outros, o fato: a cena funciona, e isso ninguém vai poder tirá-la dela.

"A Dream to Some, A Nightmare to Others"



Quando Bruce Wayne vai aos cinema junto com seus pais, o filme em que eles viram era o clássico 'The Mark of Zorro', mas outro filme estava prestes a estrear 'Excalibur'. Sua presença quase escondida no filme não o faz perceber a enorme significância que ele representa a 'Batman v Superman' e como muitos de seus elementos foram usados de inspiração para o filme. O filme de 1981 dirigido por John Boorman (diretor de clássicos como Zardoz e Deliverence, além de The Tailor of Panama) e foi um dos primeiros exemplos de clássicos do estilo "Sword and Sorcery" dos anos 80, junto com Willow, Ladyhawk, Legend e Beastmaster. O filme mostra uma versão mais estilizada e crua da lenda do Rei Arthur (Nigel Terry), que mostra um Arthur que busca entendeu seu papel de rei assim como as ações tomadas as pessoas ao seu redor, para no fim reconhecer que o Graal sempre esteve presente nele, pois ele como Rei, é a terra que comanda, e se seu rei cai, que caia para que sua terra possa viver. Se lembrou de algo? Certamente.

É interessante comentar a principio os papéis de Merlyn (Nicol Wiliamson) e Morgana LeFay (Hellen Mirren) e como eles se refletem aos papéis de Alfred e Lex Luthor, respectivamente. Mesmo Merlyn agindo de maneira que deixe a entender que ele é o protagonista, ele acaba sendo o guia e mentor tanto de Merlyn quanto da Távola Redonda, enquanto Morgana, irmã de Arthur, se reencontra com seu irmão depois de anos afim de ruir seu reino internamente. Merlyn retira Arthur dos braços de seus pais, destinados a morrer, e os deixa aos cuidados de um novo pai, que o cria com amor e carinho mesmo sem saber o futuro grandioso lhe o aguarda, o que de fato lembra muito a origem clássica do Superman.

Morgana, por outro lado, quer ter acesso a todo conhecimento de Merlyn, afim de manter-se eterna e destruir o reino de seu irmão Arthur, que o culpa por ter matado seu pai originalmente.Morgana, assim como Lex, é uma criatura movida por ódio e egoismo, que prefere ver o mundo ruir a dar razão ao próximo. As ações que levaram Arthur e Morgana a ficarem órfãos são culpa totalmente de seu pai Uther Pendragon (Gary Sinise), e sobre ele e Morgana caem o ódio de não fazer nada para reparar o passado, a não ser colocar suas frustrações em alguém no presente. Tanto Superman quanto Arthur representam algo que vai contra as crenças pessoas de Lex e Morgana, e que de certa maneira desafiam o papel deles no mundo, e por isso mesmo eles devem ser combatidos e exterminados.

A mitologia de 'Batman v Superman' também lida com o conceito de cilos de ódio, como foi dito acima, e a constante busca por poder e imortalidade. Mas o que é a imortalidade, e o que o poder pode lhe trazer a você de bom e de ruim? Arthur conseguiu limpar a terra de toda a maldade, mas o reino de paz não durou o suficiente graças as ações de Morgana, que forçaram o Rei a desmantelar a sua Távola Redonda  e abandonarem seu postos, fazendo o mal se espalhar. e pior, colocando a culpa nos bons. Como Lancelote (Nicholas Clay), já distante da Távola diz em um momento perto do fim "Eles o fizeram Deus, e Deus nos abandonou!" que acaba se encaixando que nem uma luva sobre a percepção e expectativas da população em geral com o Superman em BvS.

Mas também há um terceiro personagem do qual Batman e Superman "circulam" tematicamente, e este é Sir Percival: servo de Lancelote por vontade, que acaba virando um dos Cavaleiros da Távola ao decidir combater Gawain (Liam Nesson) na ausência de seu senhor. Percival (e Lancelote) tem sonhos sobre o que se tratam sua missão (artificio esse usado para explicar as origens do Batman e o 'Knightmare', como explicado anteriormente aqui), mas Percival (Paul Geoffrey) é o cavaleiro que, assim como o Superman, passa por um calvário, é testado ao seu limite, e mesmo assim ainda não perde a esperança, mesmo prestes a morrer. E é na experiência de quase morte que há a iluminação de sua missão, tanto no Graal que ele busca quanto na missão de Arthur.

E o que seria o Santo Graal? E é aí que Arthur começa a se aproximar mais do Batman do que do Superman. No filme, o graal seria o responsável por trazer a terra de volta a prosperidade e a riqueza que foram tirados quando Guenevere (Cherie Lunghi) e Lancelote traíram Arthur. Os Cavaleiros estavam condenados a morrer sem achar o Graal, porque aqui, ele é algo mais simbólico do que físico, como nos delírios de Arthur deixa a entender. E ao entender isso, Percival dá aquilo que seu rei moribundo precisa: motivação. Digo isso pois interpretei o achado de Percival como algo mais lírico do que literal, já que um outro cálice foi oferecido a ele e por ação do destino lhe foi negado.

E com isso, o Santo Graal do Batman é exatamente trazer a paz ao seu "reino" que é Gotham City. É uma luta que ele batalha ferozmente a 20 anos, e assim como a busca pelo Graal, lhe faz parecer que os resultados não deram em nada. Temos novamente, assim como Arthur, um herói que "ele e a sua terra são um só", então se ele está desesperançoso, a sua terra natal vai sofrer os impactos e consequências do mesmo. O Graal de Batman na verdade mora no próximo, em especifico no "monstro" que ele tenta derrotar a principio, que é o Superman.

'Excalibur' tem seu monstro mitológico que é o Dragão. Mas o Dragão ali é mais mitologia do que fato de fato: nunca vemos o Dragão de fato, só seus efeitos, especificamente a nevoa mágica que Merlyn invoca para que Pendragon chegue ao castelo de Igraine (Katherine Boorman) no começo do filme. Mas ao longo do filme se confirma que o Dragão representa o desconhecido e do poder que ele não só traz mas que pode lhe afrontar. A jornada de Arthur a principio é domar o Dragão e obter seu poder, seu controle sobre a terra "selvagem", e obtendo esse controle sobre o Dragão, ele pode fazer que seu reino de fato fique em paz.

A jornada de Superman mora em domar esse dragão em frente ao mundo onde dito que "todo ato é um ato politico", onde fazer o bem tem que servir aos interesses de alguém. Não se pode domar o Dragão sendo totalmente bondoso e procurando fazer o bem, esse é o ponto de Luthor. Enquanto isso, o ponto de Batman é que destruir o Dragão é a melhor opção, para que ele a frente, mesmo com as melhores das intenções, não acabe com tudo e todos. Não há por parte de Luthor e Batman tentar entender o Dragão para compreender melhor seu sentido e significado, a principio.

Luthor, em sua comparação com Morgana LeFay, encarou os olhos do Dragão e possui a sua tecnologia, podendo assim possuir todo o poder necessário para destruir Arthur de vez, assim como o acesso a Nave/Fortaleza da Solidão deu a Luthor o poder de criar Doomsday. Doomsday é o "filho" de Luthor, por ser sangue do seu sangue, assim como Mordred (Robert Addie) é filho (de fato) de Morgana com Arthur, criado para destruir ele e tomar seu reino, desvirtuando a principio o que ele construiu.E assim nenhuma arma criada pelo homem pode destruir Mordred, nenhuma arma humana pode destruir Doomsday, que nos leva a conexão mais óbvia dentro do filme que a Excalibur neste filme é a Lança de Kryptonita em BvS.

A Excalubur, no filme de 1981 e na mitologia, a torna rei quem a empunhar. É uma espada construída a muito tempo e que tem poderes mágicos para aqueles que a empunham por direito. A espada dá um senso de heroísmo, e justifica as ações de quem a empunha como tal. Além disso, seus poderes se revelam quando ela emite uma intensa luz verde, que dentro de 'Excalibur' pode ganhar contornos mais alegóricos, porém claros, das ações de quem a empunha. A Lança de Kryptonita, e o poder que ela traz, é tomada pelo Batman para justificar sua ação de que o Superman é o inimigo a ser detido e morto, e ela tem conotações mais alegóricas se comparada com outras lanças mitológicas.

Mas o ato final, durante o diálogo sobre Martha, reflete outro momento importante de Excalibur: de quando Arthur, ainda plebeu, dá a Excalibur a seu primeiro inimigo, Sir Uryens (Keith Buckley), em sinal de confiança de que de ele de fato vai torná-lo um cavaleiro, e não matá-lo como plebeu. Uryens e Batman tem o mesmo conflito de as possíveis ultimas ações daqueles que eles consideram seus antagonistas mostram que eles são exatamente o contrário que eles defendem, e então a Lança e a Espada, que eram instrumentos de afirmação sobre si, se tornam instrumentos de correção de seus atos, de fato, errados. Ele não serve mais como um instrumento de julgamento, mas de redenção.

Mas é na luta contra Doomsday que os paralelos entre 'Batman v Superman' e 'Excalibur' gritam. Doomsday, filho nascido do ódio de Lex Luthor com o remanescente ódio de Zod, sai causando caos e destruição, e nenhuma arma humana, seja uma espada ou bomba atômica pode pará-lo, somente a Lança de Kryptonita. Mulher Maravilha era a unica na linha de defesa, e Batman não podia fazer muito. Claro, sempre haverá um ou outro que pergunta "porque a Mulher Maravilha não usou a lança" mas exatamente no filme (e na comparação com Excalibur) que mora a sua resposta: Superman e Arthur, diante de sua batalha final, sabem que não vão sair vivos. Sabem que ninguém mais pode sofrer pelos pecados (literais) deles.

Dar a lança a Mulher Maravilha para matar Doomsday vai pará-lo, mas não vai salvar o dia resolvendo a principal questão (e de fato, o principal vilão) do filme, que como explicado amplamente em meu primeiro editorial, que é a pergunta sobre o quão confiável é o Superman para ser nosso salvador se tudo e todos em nossa sociedade questionam se de fato alguém tão poderoso pode agir para nosso bem? Ao dar poder ilimitado a um camponês, ele está certo em comandar, por melhor que ele queira fazer a nós? Mas se Arthur e a terra são como um, Lois Lane não é para Superman apenas a sua amada, é a sua Dama do Lago, Filha da Terra, que dá ao Superman o maior poder de todos, desde o 'Man of Steel': esperança. Por isso, para Lois, ela é "seu mundo", e por ele vale a pena morrer, pois o mundo vai seguir sem ele, mas não se esquecendo dos atos que fez.

Arthur e Superman tem plena consciência de que suas ações vão ecoar na sua morte, e o que ela faz é ser significativa para mudar de fato a terra em que vivem. Inglaterra sempre haverá um rei, e o Universo DC sempre haverá heróis, mas as o ato de sacrifico ali funciona de maneiras opostas. A morte de Mordred e Doomsday e o sequente sacrifico de Arthur e Superman limpa os pecados da Terra, mas se no primeiro se encerra um ciclo, o segundo abre a porta para uma nova era começar. Eles tem plena consciência de seus papéis no mundo, e não hesitam em se sacrificar ao perceber o bem que sua grandiosa sua vida e consequente épica despedida, para limpar os erros do passado e tornar o mundo deles de fato algo melhor. Mas se a Era dos Cavaleiros da Távola Redonda se acaba com a morte de Arthur, a Era dos Super Heróis começa com o sacrifico do Superman.

E é engraçado que como o grande crítico de cinema Roger Ebert define Excalibur, e como muito de sua critica acaba caindo na mesma classificação que pode também muito bem definir 'Batman V Superman': "Excalibur é uma visão revisionista de pessoas e tempos do qual Arthur pertencia [...] é um registro das idas e vindas de arbitrárias, inconsistentes e sombrias figuras que não são heróis mas simplesmente gigantes andando conosco."

E por hoje é só, pessoal!!! Esperem ver mais editorias sobre Batman v Superman, e outros filmes do DCEU no futuro! Leia meus reviews de 'Batman v Superman' do Theatrical Cut e do Ultimate Edition, além do primeiro editorial focado no Superman aqui.